Breve viagem ao País Utopia de Thomas
Morus
Não há nada como o sonho
para criar o futuro.
Utopia hoje, carne e osso amanhã.
Victor Hugo.
Debruçar-nos
sobre as águas de Utopia não será tarefa vã. Ela é, antes de tudo, invenção: criada
pelo escritor inglês Thomas Morus[1] (1478-1535) para nomear a
Ilha de sua obra A Utopia ou o Tratado da Melhor Forma de Governo(2007), a
palavra foi por ele formada através da união dos elementos gregos “óu ‘não’ e tópos ‘lugar’” (CUNHA, 2007, p. 807). Na acepção do escritor a
palavra Utopia representa, etimologicamente, a imagem de um lugar sem lugar;
idealmente, seu tópos elogiava os
princípios éticos e políticos que regiam a república de Utopia e apontava para a
possibilidade de imaginar-se um lugar reformado politicamente de modo a subtrair
as desigualdades sociais entre os povos e os seus governantes. Com efeito, a
criação deste tópos na literatura de
Morus não se daria em plano divino, mas sim na terra, pelo trabalho e pelas
mãos de homens e mulheres da Ilha cujas vidas se inclinavam para o prazer, a felicidade
e a justiça.
A maneira de organização ética e
política da Ilha de Utopia em que todas as ações “visam ao prazer, que é sua
feliz realização” sem jamais ferir o outro nesse processo, pois “roubar o
prazer de outrem ao buscar o seu é verdadeiramente uma injustiça” (MORUS, 2007,
p.101), quando de sua publicação no século XVI mostrou-se uma crítica à Inglaterra
da época, já que esta através da política econômica dos cercamentos da terra, do
monopólio sobre produtos manufaturados e da especulação do campo, excluía das
vantagens econômicas os camponeses, pequenos proprietários de terra e pequenos
comerciantes, tornando-os por sua vez miseráveis.
A ojeriza à justiça inglesa é
evidenciada no Livro Primeiro quando do diálogo entre o próprio Thomas Morus (o
autor é também personagem), Pierre Gilles (amigo de Morus) e o viajante Rafael
Hitlodeu, este nascido em Portugal, mas que doravante deixaria sua pátria para
percorrer o mundo. Rafael Hitlodeu além de viajante era também um erudito,
tendo-se dedicado ao estudo do latim, do grego e da filosofia. Suas inclinações
políticas são evidenciadas logo nas primeiras páginas do Livro Primeiro, onde
conta que certa vez sentado à mesa do cardeal John Morton (outro personagem
real contemporâneo de Morus) conheceu um homem “leigo” que também estava à mesma
mesa e enaltecia a rígida punição da Inglaterra contra os ladrões mostrando-se
surpreso com a existência dos mesmos já que eram cientes de que deveriam pagar
com a própria vida por roubarem. Ao ouvi-lo, Hitlodeu então assim o contrapôs:
Um roubo simples não é um
crime tão grande que deva ser pago com a vida. Por outro lado, nenhum castigo
conseguirá impedir o roubo por aqueles que não têm nenhum outro meio de
sobrevivência. (...) Decretam-se contra o ladrão penas duras e terríveis quando
o melhor seria providenciar-lhe meios de viver, a fim de que ninguém se veja na
cruel necessidade de roubar primeiro e ser enforcado depois. (MORUS, 2007,
p.28)
Ora, o que
vemos através dessa afirmação de Hitlodeu é um posicionamento político contra
as medidas de justiça da Inglaterra sancionadas pelos príncipes e a nobreza,
usurpadores que se nutriam do trabalho de outrem e que ainda por cima
arrastavam consigo “um cortejo de preguiçosos que jamais aprenderam um ofício
capaz de lhes dar o pão” (MORUS, 2007, p.29). O viajante além de acusar a
nobreza pela miséria do Estado, se recusava a ligar-se a qualquer rei dos
países pelos quais se aventurava - e mesmo o de seu país - pois via nesta
ligação um ofício inútil. Afinal, dirigir a palavra a um rei não seria como “contar
uma história a surdos?” (p.54) Raciocínio coerente para quem acreditava que a
filosofia está longe dos nobres de forma tal que “não tem acesso junto aos
príncipes” (p.55). Mais adiante e ainda no Livro Primeiro, Hitlodeu condenará de
forma veemente a propriedade privada, pois para o viajante enquanto tal
propriedade subsistisse “a parte mais numerosa e melhor da humanidade carregará
um pesado e inevitável fardo de miséria e preocupações” (p.59). O viajante assim,
defendendo a igual partilha dos bens como única medida para a aquisição de um
Estado justo e próspero, vê no modo de governo regido soberanamente pelo
dinheiro o elemento que fecunda os males, as desigualdades, o abuso de poder pelo
principado e as misérias de um povo. Indagado por Morus sobre a possibilidade
de imaginar uma vida diferente desta, em que os bens pudessem ser igualmente
partilhados, Hitlodeu dá início então no Livro Segundo à sua descrição dos
costumes e instituições da Ilha de Utopia, país cercado me mar por todos os
lados onde viveu mais de cinco anos e que “jamais o teria deixado se não fosse
para fazer conhecer esse novo universo” (MORUS, 2007, p.61). Descrevendo Utopia
percebemos que os utopianos viviam sob um sistema de governo que não sucumbia às
perversões como o Estado Europeu. A Ilha, com suas casas que permitiam a entrada
de qualquer pessoa, não incitava a propriedade privada e se constituía como um tópos harmonioso pensado por seus
próprios habitantes, construído por seus esforços e capaz de tornar a
felicidade um bem vivível, já que regidos por leis incorruptíveis. A Cidade bem
como todas as outras do País é regida por leis que visavam a igual partilha dos
bens da vida de maneira tal que os utopianos possuíam um desprezo pelo ouro e a
prata, como assim relata Hitlodeu:
Eles próprios não fazem uso
da moeda. Conservam-na para um acontecimento que pode sobrevir, mas que pode
também jamais ocorrer. Esse ouro e essa prata eles a conservam sem
atribuir-lhes mais valor que o que comporta sua natureza própria. (...) Com
efeito, estes se espantam que um mortal possa se comprazer tanto com um brilho
incerto de uma pequena gema, quando pode contemplar as estrelas e o sol.
(MORUS, 2007, p. 95)
Vê-se na Ilha
de Utopia e em sua capital Amaurota a
descrição de um povo que prefere deter-se aos prazeres e as belezas da natureza
a deixar-se corromper pelos valores dados ao dinheiro por certas civilizações
(como a própria Inglaterra). A Ilha criada não por inspiração divina, mas pelo trabalho
e inteligência da civilização utopiana é um espaço sonhado de uma Cidade literalmente
sem lugar, imaginada pelo autor. Sobretudo, a descrição desse quimérico País criado
por Morus no século XVI dirigia-se à Inglaterra do seu Tempo, mas também a ultrapassava,
pois prenunciava o futuro naquele ano de 1516: sua literatura influenciaria as
bases das teorias socialistas dos séculos XIX-XX (foi referência para a
Revolução Russa) e lançaria ao mundo as auroras do pensamento sobre um tópos encontrado nos mares de espaços idealizados,
localizados em geografias imaginárias. A
Utopia deve-se pontuar, plantou as sementes que germinaram no contemporâneo
o pensamento caminhante que leva o nome de sua obra e que ainda hoje se debruça
sobre outras utopias, atopias e heterotopias[2] do mundo, cujas veredas inevitavelmente
acabam por perpassar a estrada dos delírios, paixão esta que é tão cara a nós humanos...
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CUNHA, Antonio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Lexicon, 2007.
MORUS, Tomás. A Utopia ou O Tratado da Melhor Forma de Governo. Tradução de Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM, 2007.
FOUCAULT, Michel. "Outros Espaços". In: Estética: literatura e pintura, música e cinema/Michel Foucault. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
[1]
Thomas Morus nome latinizado de
Thomas More, por vezes traduzido para o português como Tomás Morus, nasceu em
Londres em 1478. Viveu na época das descobertas marítimas, literaturas de
viagens e da Reforma Católica (tendo apoiado o rei na Contra-Reforma). Foi
contemporâneo de Erasmo de Rotterdam (1466-1536) e Nicolau Maquiavel
(1469-1527). A Utopia ou O Tratado da
Melhor forma de Governo publicada em latim no ano de 1516 tem como
referência narrativa A República, de Platão. Morus foi
decapitado em 1535, por não apoiar o divórcio do rei Henrique VIII. Foi
beatificado em 1935 pela Igreja Católica.
[2] Termo formado por aglutinação pelos
elementos gregos “heteros ‘outro,
diferente’” e “topo-, de topos ‘lugar’”
(CUNHA, 2007, p.408 e 776) é um conceito criado por Michel Foucault (1926-1984)
e apresentado na Conferência Outros
Espaços (1984). Para o autor, as heterotopias ao contrário das utopias
“espaços que fundamentalmente são essencialmente irreais” (p.414) seriam
espaços reais, localizáveis: “utopias efetivamente realizadas” (p.415).