domingo, 23 de fevereiro de 2014

Obrigada, Hélio Oiticica! - Como verti os textos do artista em círculo de fogo para aquecer meu peito

Cartografia para o Mundo-Abrigo de Hélio Oiticica
 Caderno Rumos. Luana Costa. Niterói, 2012.
Hélio Oiticica, um balbucio pronunciado entre folhas e tropicálias.
         Um grito quebradiço por entre galhos e árvores.
         Uma erva daninha crescente sob o solo de concreto...
     Ouvindo-o ao longo de minha vida através de entreditos pronunciados como glossolalias tribalísticas de um canto mundano, o nome do artista não se fez ressoar com amplitude odisséica nos confins das matas mato-grossenses a Oeste do País, território onde vivia. Tive de inclinar-me a bombordo, costa esquerda, Sudeste do Brasil para escutar Hélio com plenitude radiofônica. Oiticica, anarquista “de corpo e alma” (OITICICA, 2009, p.41), era neto de anarquista[1] e foi uns dos artistas de vanguarda mais representativos no Brasil; continua sendo válvula propulsora para muitas ações artísticas contemporâneas.
Hélio Oiticica carrega o fogo em seu próprio nome: Na mitologia grega, Hélio é o Deus-Sol. Irmão de Aurora e da Lua casou-se com a filha do Titã Oceano e é pai de Pasífae, mulher que daria luz ao Minotauro. Como tarefa, O Deus-Sol tinha de percorrer o céu todas as manhãs de leste a oeste num carro de fogo puxado por quatro corcéis alados para levar calor aos homens. Olho aberto sobre o mundo o monumento erguido ao deus, conhecido também como o colosso de Rodes, elevava-se muitos metros acima do nível do mar e permitia aos navios atravessarem o Oceano passando por entre as pernas da estátua do deus sem correrem perigo (HACQUARD, 1996, p. 61).
            Hélio Oiticica nasceu no Rio de Janeiro e abriu os olhos sobre o mundo em julho de 1937. Percorreu-o ardendo em vida e arte para deixá-lo em março de 1980 na cidade onde nascera e partiu não sem antes entregar-nos como herança de um delírio inventivo os seus pensamentos sobre sua própria obra e sobre o mundo, grande parte deles expostos em sua escrita, pois escrever sobre seu trabalho foi prática desenvolvida desde o início de suas proposições artísticas. Hélio, inventivo, performer, experimentador, escrevera centenas de textos em que elaborou/laborou o pensamento sobre seus trabalhos bem como inúmeras críticas sobre a época em que vivera e a situação artística de seu tempo. Foi o representante mais jovem dos neoconcretos[2], movimento artístico em que também pertencera Lygia Clark (1920-1988), artista com quem estabelecera uma profunda relação de admiração e amizade durante longo tempo. Escreveu vários textos em que analisou os aspectos da obra da artista e manteve com ela correspondência através de cartas[3] ao longo de dez anos.
Além das cartas trocadas com Lygia, muitos dos textos de Hélio podem ser encontrados em publicações[4], páginas de seus caderninhos de bolso, folhas avulsas, páginas datilografadas e outros escritos, arquivados e disponibilizados pelo Projeto HO[5]. A existência dos arquivos do Projeto HO mostra-se hoje de importância indiscutível para a divulgação da obra do artista, já que permitiu importantes publicações em livro dos textos de Hélio, como a obra Aspiro ao grande Labirinto (1986), publicação que organizou os textos do artista correspondentes à sua produção entre as décadas de 1954-1969.
No Prefácio à obra referida, Luciano Figueiredo concluiu sobre a produção escrita de Hélio:

Hélio Oiticica é uns dos casos raros da arte brasileira onde o artista elabora teorias, conceitua e pensa a própria obra. Assim o fez desde os anos de aprendizado e desenvolveu uma forma própria como sua poética, ao longo de toda sua trajetória. Para Oiticica escrever foi inicialmente um meio de ‘fixar’ questões essenciais no campo da arte e isto está bem claro em seus primeiros textos, curtos e ainda sob a forma de diário (OITICICA, 1986, p.5).


O próprio Hélio Oiticica reconhecia a importância da atividade escrita como elemento nodal de seu processo de trabalho. Para ele, os escritos realizados por artistas seriam um testemunho sobre as experiências realizadas e permitiriam adentrar no pensamento que teria originado as proposições. Essa afirmação foi feita por Hélio Oiticica em entrevista a Vera Martins para o Jornal do Brasil no ano de 1961:

Acho importantíssimo que os artistas deem o seu próprio testemunho sobre sua experiência. A tendência do artista é ser cada vez mais consciente do que faz. É mais fácil penetrar o pensamento do artista quando ele deixa um testemunho verbal de seu processo criador. Sinto-me sempre impelido a fazer anotações sobre todos os pontos essenciais do meu trabalho (OITICICA, 2009, p.25).


A produção escrita acompanhou as produções de Hélio desde 1954, quando começou a trabalhar com o artista Ivan Serpa (1923-1973)[6].

Os processos de seus projetos tais como Bólides; Cosmococa; Núcleos; Tropicália; Penetráveis; Parangolés; Éden e Barracão foram alimentados e retroalimentados por seus escritos. Da leitura dos textos de Hélio, se percebe as interconexões existentes entre eles, uma ideia irradiando sobre a outra, uma proposição fazendo referências às demais. Cada texto age como um ponto de luz que imaginariamente se conectam para, entre si, formarem as imagens de uma constelação. Hélio, que considerava o desejo de realização de suas proposições como sendo uma “necessidade cósmica” (HÉLIO, 1986, p. 28), deixou-nos em seus textos as imagens de um labirinto: para deixar-se afetar por suas ideias é preciso também permitir-se perder-se...
À mesma época dos notebooks de textos como Barracão (1969), Hélio também escrevera Mundo-Abrigo (1973) texto que se revela como uma potência de registro escrita de suas ambições estéticas, de seu pensamento sobre o mundo, a arte e a vida.  Proposição para uma “experimentalidade livre” (OITICICA, 1973, p.1), Mundo-Abrigo é um texto programa que nos conduz às formulações vitais do artista: o mundo é abrigo, guarida, shelter e possível de ser experimentado de modo não condicionado e pode ser construído coletivamente. Assumindo a experimentalidade em suas proposições, o sentido de abrigo e coletividade descrito por Hélio opõe-se aos comportamentos sociais, às estruturas da “casa-família” e das representações da estrutura familiar, consideradas retrógadas pelo artista. Para ele, ao contrário, é preciso buscar as possibilidade de exercitar uma atividade de experimentalidade livre no mundo. Destacando o urbano nesse processo - espaço reconhecido por ele como mais propício a experiências - Oiticica fornece pistas sobre os tipos de experiência que buscava realizar. A experimentação do Mundo-Abrigo não se trata da criação de condições de uma experiência estética fracionada, mas sim de tomar o mundo de assalto para transformá-lo em

PLAYGROUND e onde o comportamento individual (- coletivo) não se quer adaptar a patterns gerais de trabalho lazer, mas a experimentação de comportamento mesmo que essas nasçam fragmentadas e isoladas (o que deve acontecer) (OITICICA, 1973, p.7).

Abrir-se ao mundo para fazê-lo morada e guarida seria uma das ideias centrais de sua proposição[7] que, sobretudo é também de natureza política, já que buscava implantar uma nova prática de vida para o indivíduo. Para Hélio Oiticica (1973) experimentar o Mundo-Abrigo implicaria também em um “tipo de experiência de vários níveis” (p.3), realizada sem distanciar-se da vida ou dos interesses do dia-a-dia, mas lançando-se inteiramente a ela.
A proposição contida neste texto e as ideias políticas libertárias que o nutrem insuflaram-me para prosseguir com minha pesquisa artística. Quando decidi velejar para outras terras, correr mundo, embarcar em outras naus, descer em outros cais optando “experimentar solto das amarras da terra-terrinha” para lançar-me “own our own numa condição de explorar” (OITICICA, 1973, p.1-2, grifo do autor), vi o mundo abrir-se diante de meus poros para tornar-se o meu resguardo, minha proteção, meu amparo, meu agasalho, meu conchego, meu shelter. Encontrando o abrigo no Mundo vivi-o com a intensidade combatente de um corpo guerreiro exaurido pela guerra. Disse o bruxo: “Abrir-se ao MUNDO e vivê-lo como GUARIDA-ABRIGO é aproximar-se e arder pela vida para a intensificação do viver” (OITICICA, 1973, p. 3, destaque do autor). Tomei para mim essas palavras para arder na vida e pela própria vida. Aproximei-me... e deixei-me incendiar...  
Tendo-me lançado de modo irremediável aos movimentos da vida ao decidir lançar âncora no Estado do Rio de Janeiro e já solta das amarras da “terra terrinha”, encontrei neste texto de Hélio a força própria de um levante para prosseguir minha proposta artística que, todavia, se constitui por uma ação de experimentalidade livre para fazer do mundo o meu abrigo, minha casca, minha proteção e minha guarida. De fato, em minha proposta artística procuro fazer do Mundo e das ruínas de aconchego encontradas nos espaços da cidade uma franca morada ainda que efêmera para meu corpo, como se vê a seguir:


Meditação Urbana, da série Em busca
de espaços de abrigo. Luana Costa. Foto: Ana Tharoell.
As proposições contidas em Mundo-Abrigo me influenciaram na escolha da palavra “abrigo” em minha pesquisa para referir-me a essa saga nas cidades de Niterói e Rio de Janeiro. Lançando-me pelas regiões desconhecidas das cidades, atravessando lugares ainda estrangeiros para mim, o texto do artista instalou-se no meu peito como roda de fogo acendida para aquecer o meu corpo. As palavras-carne de Hélio Oiticica deram-me vitalidade, força, energia e também coragem para prosseguir essa minha busca por espaços na cidade que me permitam, através de uma experimentalidade livre no mundo, criar o meu modo de vida guerreiro.





[1] José Oiticica (1882-1957), anarquista, filólogo, professor, poeta, avô de Hélio Oiticica, foi uns dos membros da Insurreição Anarquista (1918) no Brasil. Foi autor de Sonetos (1919), A doutrina anarquista ao alcance de todos (1945), dentre outros.

[2] Movimento artístico de vanguarda dos anos 1950-1960 ocorrido no Brasil. Hélio Oiticica participou da I Exposição Nacional de Arte Concreta, em 1956-1957, no Rio de Janeiro e em São Paulo.

[3]CLARK, Lygia. OITICICA, Hélio. Cartas, 1964-1974. Org. Luciano Figueiredo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996.

[4] Atualmente César Oiticica Filho, sobrinho do artista, cineasta, curador, artista plástico e fotógrafo, têm organizado importantes obras para divulgação do trabalho de Hélio tais como a coletânea Oiticica - Entrevistas (2009), reunião de entrevistas realizadas com o artista ao longo das décadas de 1960-1980 e Museu é o mundo (2012), livro de ensaios de Hélio.

[5] O Projeto HO é uma associação sem fins lucrativos criada em 1981 pelos irmãos de Hélio com a finalidade de preservar, estudar e difundir a obra plástica e escrita do artista. Em parceria com o Projeto HO e o Instituto Itaú Cultural, Lisette Lagnado, curadora e crítica de arte, criou no ano de 1991 o Programa Hélio Oiticica, para disponibilizar virtualmente aos pesquisadores do artista a produção teórica de Hélio contida em seus escritos.

[6] Ivan Serpa foi fundador do Grupo Frente  no ano de 1954, grupo de vanguarda composto por artistas do Rio de janeiro para representar o movimento Concreto. O grupo Frente foi integrado por Hélio Oiticica, Lygia Clark, Lygia Pape, Ferreira Gullar entre outros. No entanto, os confrontos ideológicos com o Grupo Ruptura (movimento Concreto de São Paulo) levaram à extinção do Frente em 1956 e a criação do movimento Neoconcreto.

[7] A proposição foi experimentada através do projeto Barracão, montado pela primeira vez na Universidade de Sussex em 1969. O artista construiu, ajudado pelos estudantes, uma estrutura formada por ninhos que poderiam ser habitados.