Cartografia para o Mundo-Abrigo de Hélio Oiticica.
Caderno Rumos. Luana
Costa. Niterói, 2012.
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Hélio Oiticica, um balbucio pronunciado entre folhas e tropicálias.
Um grito quebradiço por entre galhos
e árvores.
Uma erva daninha crescente sob o solo
de concreto...
Ouvindo-o ao longo de minha
vida através de entreditos pronunciados como glossolalias tribalísticas de um
canto mundano, o nome do artista não se fez ressoar com amplitude odisséica nos
confins das matas mato-grossenses a Oeste do País, território onde vivia. Tive
de inclinar-me a bombordo, costa esquerda, Sudeste do Brasil para escutar Hélio
com plenitude radiofônica. Oiticica, anarquista “de corpo e alma” (OITICICA,
2009, p.41), era neto de anarquista[1]
e foi uns dos artistas de vanguarda mais representativos no Brasil; continua
sendo válvula propulsora para muitas ações artísticas contemporâneas.
Hélio
Oiticica carrega o fogo em seu próprio nome: Na mitologia grega, Hélio é o
Deus-Sol. Irmão de Aurora e da Lua casou-se com a filha do Titã Oceano e é pai
de Pasífae, mulher que daria luz ao Minotauro. Como tarefa, O Deus-Sol tinha de
percorrer o céu todas as manhãs de leste a oeste num carro de fogo puxado por quatro
corcéis alados para levar calor aos homens. Olho aberto sobre o mundo o
monumento erguido ao deus, conhecido também como o colosso de Rodes, elevava-se
muitos metros acima do nível do mar e permitia aos navios atravessarem o Oceano
passando por entre as pernas da estátua do deus sem correrem perigo (HACQUARD,
1996, p. 61).
Hélio
Oiticica nasceu no Rio de Janeiro e abriu os olhos sobre o mundo em julho de
1937. Percorreu-o ardendo em vida e arte para deixá-lo em março de 1980 na
cidade onde nascera e partiu não sem antes entregar-nos como herança de um
delírio inventivo os seus pensamentos sobre sua própria obra e sobre o mundo, grande
parte deles expostos em sua escrita, pois escrever sobre seu trabalho foi prática
desenvolvida desde o início de suas proposições artísticas. Hélio, inventivo, performer, experimentador, escrevera
centenas de textos em que elaborou/laborou o pensamento sobre seus trabalhos
bem como inúmeras críticas sobre a época em que vivera e a situação artística de
seu tempo. Foi o representante mais jovem dos neoconcretos[2],
movimento artístico em que também pertencera Lygia Clark (1920-1988), artista
com quem estabelecera uma profunda relação de admiração e amizade durante longo
tempo. Escreveu vários textos em que analisou os aspectos da obra da artista e
manteve com ela correspondência através de cartas[3] ao
longo de dez anos.
Além das cartas trocadas com
Lygia, muitos dos textos de Hélio podem ser encontrados em publicações[4],
páginas de seus caderninhos de bolso, folhas avulsas, páginas datilografadas e
outros escritos, arquivados e disponibilizados pelo Projeto HO[5].
A existência dos arquivos do Projeto HO mostra-se hoje de importância indiscutível
para a divulgação da obra do artista, já que permitiu importantes publicações
em livro dos textos de Hélio, como a obra Aspiro
ao grande Labirinto (1986), publicação que organizou os textos do artista
correspondentes à sua produção entre as décadas de 1954-1969.
No Prefácio à obra referida, Luciano
Figueiredo concluiu sobre a produção escrita de Hélio:
Hélio
Oiticica é uns dos casos raros da arte brasileira onde o artista elabora
teorias, conceitua e pensa a própria obra. Assim o fez desde os anos de
aprendizado e desenvolveu uma forma própria como sua poética, ao longo de toda sua trajetória. Para Oiticica escrever
foi inicialmente um meio de ‘fixar’ questões essenciais no campo da arte e isto
está bem claro em seus primeiros textos, curtos e ainda sob a forma de diário (OITICICA,
1986, p.5).
O próprio Hélio Oiticica reconhecia a
importância da atividade escrita como elemento nodal de seu processo de
trabalho. Para ele, os escritos realizados por artistas seriam um testemunho
sobre as experiências realizadas e permitiriam adentrar no pensamento que teria
originado as proposições. Essa afirmação foi feita por Hélio Oiticica em
entrevista a Vera Martins para o Jornal do Brasil no ano de 1961:
Acho
importantíssimo que os artistas deem o seu próprio testemunho sobre sua
experiência. A tendência do artista é ser cada vez mais consciente do que faz.
É mais fácil penetrar o pensamento do artista quando ele deixa um testemunho
verbal de seu processo criador. Sinto-me sempre impelido a fazer anotações
sobre todos os pontos essenciais do meu trabalho (OITICICA, 2009, p.25).
A produção escrita acompanhou
as produções de Hélio desde 1954, quando começou a trabalhar com o artista Ivan Serpa (1923-1973)[6].
Os processos de seus projetos
tais como Bólides; Cosmococa; Núcleos; Tropicália;
Penetráveis; Parangolés; Éden e Barracão
foram alimentados e retroalimentados por seus escritos. Da leitura dos textos
de Hélio, se percebe as interconexões existentes entre eles, uma ideia irradiando
sobre a outra, uma proposição fazendo referências às demais. Cada texto age
como um ponto de luz que imaginariamente se conectam para, entre si, formarem
as imagens de uma constelação. Hélio, que considerava o desejo de realização de
suas proposições como sendo uma “necessidade cósmica” (HÉLIO, 1986, p. 28),
deixou-nos em seus textos as imagens de um labirinto: para deixar-se afetar por
suas ideias é preciso também permitir-se perder-se...
À
mesma época dos notebooks de textos
como Barracão (1969), Hélio também
escrevera Mundo-Abrigo (1973) texto
que se revela como uma potência de registro escrita de suas ambições estéticas,
de seu pensamento sobre o mundo, a arte e a vida. Proposição para uma “experimentalidade livre”
(OITICICA, 1973, p.1), Mundo-Abrigo é
um texto programa que nos conduz às formulações vitais do artista: o mundo é
abrigo, guarida, shelter e possível
de ser experimentado de modo não condicionado e pode ser construído
coletivamente. Assumindo a experimentalidade em suas proposições, o sentido de
abrigo e coletividade descrito por Hélio opõe-se aos comportamentos sociais, às
estruturas da “casa-família” e das representações da estrutura familiar,
consideradas retrógadas pelo artista. Para ele, ao contrário, é preciso buscar
as possibilidade de exercitar uma atividade de experimentalidade livre no mundo.
Destacando o urbano nesse processo - espaço reconhecido por ele como mais
propício a experiências - Oiticica fornece pistas sobre os tipos de experiência
que buscava realizar. A experimentação do Mundo-Abrigo não se trata da criação
de condições de uma experiência estética fracionada, mas sim de tomar o mundo
de assalto para transformá-lo em
PLAYGROUND
e onde o comportamento individual (- coletivo) não se quer adaptar a patterns
gerais de trabalho lazer, mas a experimentação de comportamento mesmo que essas
nasçam fragmentadas e isoladas (o que deve acontecer) (OITICICA, 1973, p.7).
Abrir-se
ao mundo para fazê-lo morada e guarida seria uma das ideias centrais de sua
proposição[7]
que, sobretudo é também de natureza política, já que buscava implantar uma nova
prática de vida para o indivíduo. Para Hélio Oiticica (1973) experimentar o
Mundo-Abrigo implicaria também em um “tipo de experiência de vários níveis”
(p.3), realizada sem distanciar-se da vida ou dos interesses do dia-a-dia, mas
lançando-se inteiramente a ela.
A
proposição contida neste texto e as ideias políticas libertárias que o nutrem insuflaram-me
para prosseguir com minha pesquisa artística. Quando decidi velejar para outras
terras, correr mundo, embarcar em outras naus, descer em outros cais optando
“experimentar solto das amarras da terra-terrinha” para lançar-me “own our
own numa condição de explorar” (OITICICA, 1973, p.1-2, grifo do autor), vi
o mundo abrir-se diante de meus poros para tornar-se o meu resguardo, minha
proteção, meu amparo, meu agasalho, meu conchego, meu shelter. Encontrando o abrigo no Mundo vivi-o com a intensidade
combatente de um corpo guerreiro exaurido pela guerra. Disse o bruxo: “Abrir-se
ao MUNDO e vivê-lo como GUARIDA-ABRIGO é aproximar-se e arder pela vida para a
intensificação do viver” (OITICICA, 1973, p. 3, destaque do autor). Tomei para
mim essas palavras para arder na vida e pela própria vida. Aproximei-me... e
deixei-me incendiar...
Tendo-me
lançado de modo irremediável aos movimentos da vida ao decidir lançar âncora no
Estado do Rio de Janeiro e já solta das amarras da “terra terrinha”, encontrei
neste texto de Hélio a força própria de um levante para prosseguir minha
proposta artística que, todavia, se constitui por uma ação de experimentalidade
livre para fazer do mundo o meu abrigo, minha casca, minha proteção e minha
guarida. De fato, em minha proposta artística procuro fazer do Mundo e das
ruínas de aconchego encontradas nos espaços da cidade uma franca morada ainda
que efêmera para meu corpo, como se vê a seguir:
As proposições contidas em Mundo-Abrigo me influenciaram na escolha da palavra “abrigo” em
minha pesquisa para referir-me a essa saga nas cidades de Niterói e Rio de
Janeiro. Lançando-me pelas regiões desconhecidas das cidades, atravessando lugares
ainda estrangeiros para mim, o texto do artista instalou-se no meu peito como
roda de fogo acendida para aquecer o meu corpo. As palavras-carne de Hélio
Oiticica deram-me vitalidade, força, energia e também coragem para prosseguir essa
minha busca por espaços na cidade que me permitam, através de uma experimentalidade
livre no mundo, criar o meu modo de vida guerreiro.
Meditação Urbana, da série Em busca de espaços de abrigo. Luana Costa. Foto: Ana Tharoell. |
[1]
José Oiticica (1882-1957),
anarquista, filólogo, professor, poeta, avô de Hélio Oiticica, foi uns dos
membros da Insurreição Anarquista (1918) no Brasil. Foi autor de Sonetos (1919), A doutrina anarquista ao alcance de todos
(1945), dentre outros.
[2] Movimento artístico de vanguarda dos anos 1950-1960 ocorrido no Brasil. Hélio Oiticica participou da I Exposição Nacional de Arte Concreta, em 1956-1957, no Rio de Janeiro e em São Paulo.
[3]CLARK, Lygia. OITICICA, Hélio. Cartas, 1964-1974. Org. Luciano Figueiredo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996.
[4] Atualmente César Oiticica Filho, sobrinho do artista, cineasta, curador, artista plástico e fotógrafo, têm organizado importantes obras para divulgação do trabalho de Hélio tais como a coletânea Oiticica - Entrevistas (2009), reunião de entrevistas realizadas com o artista ao longo das décadas de 1960-1980 e Museu é o mundo (2012), livro de ensaios de Hélio.
[5] O Projeto HO é uma associação sem fins lucrativos criada em 1981 pelos irmãos de Hélio com a finalidade de preservar, estudar e difundir a obra plástica e escrita do artista. Em parceria com o Projeto HO e o Instituto Itaú Cultural, Lisette Lagnado, curadora e crítica de arte, criou no ano de 1991 o Programa Hélio Oiticica, para disponibilizar virtualmente aos pesquisadores do artista a produção teórica de Hélio contida em seus escritos.
[6] Ivan Serpa foi fundador do Grupo Frente no ano de 1954, grupo de vanguarda composto por artistas do Rio de janeiro para representar o movimento Concreto. O grupo Frente foi integrado por Hélio Oiticica, Lygia Clark, Lygia Pape, Ferreira Gullar entre outros. No entanto, os confrontos ideológicos com o Grupo Ruptura (movimento Concreto de São Paulo) levaram à extinção do Frente em 1956 e a criação do movimento Neoconcreto.
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