quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Ode às minhas companheiras de viagem

Minha doce irmã/ Pensa na manhã/ Em que iremos, numa viagem/ Amar a valer/ Amar e morrer/ No país que é a tua imagem! / Os sóis orvalhados/ Desses céus nublados/ Para mim guardam o encanto/ Misterioso e cruel/ De teu olho infiel/ Brilhando através do pranto(...)
(Charles Baudelaire, Convite à viagem).


Permitir-se ao mergulho nos mares de uma ação poética caminhante, lançar mão do cotidiano interior para adentrar nos eflúvios de cotidiano outro não é tarefa a se ignorar. Acreditar naquele que sonha e fazer do sonho de alguém elemento de sua própria vida é sobremaneira um ato de concessão e confiança. Conquistar a cidade durante essa busca por espaços heterotópicos não foi ato que se fez só – nesse processo artístico a peregrinação pelos espaços desconhecidos da cidade se consumou em uníssono com a conquista da confiança do outro.
Enquanto estrangeira da cidade não só a paisagem urbana fora estranha para mim no decorrer deste estudo; também aquele que a habita, com suas histórias, percepções, sensações e vivências era também uma esfinge por conhecer e decifrar. Nesse sentido, cabe afirmar que esta pesquisa, embora evoque em diversos instantes a necessidade de apaziguamento de uma solidão encarnada em meu corpo, bem como o desejo de sentir-me abrigada e aceita pela cidade adversa, não foi um estudo que se materializou na solidão.
Aqueles que me acompanharam até alguns Espaços de Abrigo, fotografando-me dentro deles com minha câmera pessoal bem como aceitando andar por caminhos um pouco mais longínquos na procura por estes espaços, buscando-os comigo e inclusive tendo sugerido espaços outros para minha habitação - espaços estes que foram de grande importância nesta pesquisa, tal como a habitação heterotópica nomeada Meditação Urbana - todas estas pessoas tornaram-se de extrema importância neste processo de pesquisa mas não apenas: deram o sopro de vida para que este trabalho pudesse ser erigido.
Outrora desconhecidas, as mulheres que comigo adentraram ainda que brevemente nesta aventura na cidade do Mar tornaram-se muito mais que um agente autônomo dentro de um processo de criação artística: elas tornaram-se cúmplices de minha existência, de minha jornada de vida, de minha estadia nos espaços do mundo; aceitaram e se permitiram viajar comigo neste processo que não é somente um processo de pesquisa em artes, mas também um processo latente de vida, da vida em seu turbilhão de transformações, medos, concessões, desejos, descobertas, buscas e intensidades.
Por essa razão, dei-me permissão neste momento da pesquisa de realizar uma licença poética. Às que me acompanharam em minha nau, e que sobremaneira adentraram nas aventuras que busquei tecer aqui, chamei-as companheiras de viagem. Pois foram estas pessoas no decorrer do presente trabalho, tal como a mim, viajantes dessa embarcação poética. Ora, a ação de viajar etimologicamente, é o “ato de ir de um a outro lugar relativamente afastado” (CUNHA, 2007, p. 820); daí deriva o adjetivo viajante, aquele que viaja, que se desloca.
Sobremodo, é possível pensar também a viagem como metáfora poética capaz de evidenciar a poesia contida nos movimentos e encontros da própria vida. Evoco aqui a viagem como elemento de um mergulho poético que se desdobra e se movimenta nos espaços da cidade contemporânea. A viagem, assim, adentra como processo de metaforização de um percurso lírico e que se desdobra em uma experiência de arte & vida.
A cidade, poeticamente, revelou-se a mim como uma espécie de Atlântida às avessas; senti-me em incontáveis momentos navegadora marítima de um país desconhecido em detrimento de seus terrenos nunca vistos, um verdadeiro oceano urbano frente a meus olhos estrangeiros. Lembro-me de Victor Hugo, em uma passagem da obra Os trabalhadores do mar: “De todas as misturas, a do oceano é a mais invisível e a mais profunda” (HUGO, 1957, p. 209). Tendo mergulhado comigo nesse profundo (in)visível, as minhas companheiras de viagem permitiram-se adentrar temporariamente nos meus sonhos e anseios mais ocultos: Ana Tharoel, Mariana Farias, Jéssika Oliveira, Stéphane Dis e Thaís.
Essas mulheres, com seus olhares-luz acompanharam-me,ainda que breve, quando de minha habitação em alguns escolhos da cidade-oceano registrando dentro do sempre essa experiência. Fizeram-no por vontade. E alegria. À essas mulheres, minhas companheiras de viagem, ofereço também meu canto e a literatura da pesquisa que aqui se desnovela. Com o coração aberto, afirmo com consciência e gratidão: Nada nunca será obstáculo para aquele que não se esquiva frente as torrentes do mar.

Luana Costa, abril de 2014. Trecho da Dissertação "A Poetisa vai à guerra: heterotopias para uma estética da existência", da autora.



sábado, 15 de março de 2014

UMA POETA PENSA O MUNDO: DIÁLOGOS ENTRE POESIA, IMAGEM E SOM

Artigo no prelo pela Revista Nau Literária -
 crítica e teoria de literaturas em língua portuguesa


No ano de 2012, os professores e artistas Ricardo Basbaum (UERJ) e Brandon LaBelle (Academia de Belas Artes da Noruega) realizaram através do curso “Voz, Texto e Coletividade/ Voice, Text, Collectivity”, uma proposta de criação, experimentação e parceria artística entre os alunos de Pós-Graduação em Artes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e dos alunos de Pós-Graduação da Academia de Belas Artes da Noruega. Naquela ocasião, o curso ofertado pelas duas instituições parceiras buscava problematizar as questões pertinentes às artes sonoras, proporcionando uma investigação acerca da produção e emissão de voz (leitura, fala e seus desdobramentos), dos processos de criação e produção de discurso (escrito, impresso ou gravado), bem como da emissão de voz em domínio coletivo (coros, refrões, manifestações, conversas coletivas e dinâmicas de grupo). 
Ao longo do curso o som esteve no centro de nossa pesquisa de tal modo que, buscando iniciar um alargamento de nossas percepções com respeito à arte sonora foram formuladas desde o início do processo de trabalho algumas perguntas concernentes ao campo sônico, tais como: “O que é o ouvir?”; “O que ouvimos?”; “Existem diferentes tipos de escuta?”; “Por que nos concentramos em alguns tipos de sons e ignoramos outros?”.  Essas indagações, intermediadas em nossas aulas pelo artista e Prof. Ricardo Basbaum, foram expostas de maneira empírica e delicada, despertando-nos aos sensíveis que essas mesmas questões provocavam - enquanto pensávamos sobre tais perguntas, Basbaum convidava-nos a escutar o som do vento que entrecortava as persianas, o som das buzinas dos automóveis que ressoavam das ruas até a larga janela (um ouvido aberto sobre o mundo) da sala de aula...
Sobremaneira, para pensar um exercício sobre a escuta e ajudar-nos a problematizar questões que foram surgindo-nos, importantes pensadores do som adentraram como escopo de leitura em nossas investigações, dentre eles Christoph Cox (2001)  e o texto Beyond Representation and Signification: Toward a Sonic Materialism, Michel de Certau (1996) e sua obra de Vocal Utopias: Glossolalias, o próprio Brandon LaBelle (2006) e a obra Background Noise: Perspectives on Sound Art e o escritor, compositor e educador musical Murray Schafer (1992), autor dentre outras da obra A Sound Education: 100 Exercises in Listening and Soundmaking.
 Tais textos foram discutidos, sempre os associando às experimentações no campo da linguagem e do som realizadas pelos artistas modernos e contemporâneos. A obra de Schafer no entanto revelou-se de destacada importância para nossos apontamentos pois através dos exercícios sonoros propostos pelo autor logramos discutir alguns pontos chave pertencentes ao campo sônico nos fazendo valer de muitas das assertivas do autor sobre as experimentações sonoras.
Destaquemos algumas observações de Schafer contidas em A Sound Education. Nesse seu trabalho o pesquisador canadense afirma que o ambiente ao nosso redor seria uma potente paisagem sonora, e a escuta não seria uniforme, tampouco a mesma para todos os indivíduos - não apenas os indivíduos escutariam de formas diferentes entre si como também as sociedades e culturas possuiriam escutas distintas umas das outras, já que a paisagem sonora do mundo seria “incrivelmente variável diferindo de acordo com a hora, a estação, o lugar e a cultura” (SCHAFER, 1992, p. 8, tradução minha). Haveriam ainda diferenças entre o que ele chamou de “escuta concentrada” e “escuta periférica”, escutas pela quais determinados sons se sobreporiam culturalmente sobre outros, deixando à margem certos sons ignorados em sua matéria sonora. Para ilustrar essa afirmação destaco aqui algumas das indagações propostas pelo autor:


Por que nós nos concentramos em determinados sons, enquanto que outros ouvimos apenas por acaso? Seriam alguns sons descriminados culturalmente de modo a não serem ouvidos de nenhum modo? (Um africano disse certa vez: ‘O Apartheid é um som!'). Alguns sons são filtrados ou tornados imperceptíveis por outras pessoas? E como é que a mudança do ambiente acústico afetaria os tipos de sons que escolhemos para ouvir ou ignorar? (SCHAFER, 1992, p. 7-8, tradução minha).



Ao revelar o campo sonoro como uma paisagem passível de ser delimitada, edificada, com sons culturalmente aceitos e outros ignorados, o autor expõe em seguida que uma consciência sobre o som e os diferentes modos de ouvir devem ser por nós repensados de maneira profunda, amplificada. Para ele muitos dos sons que escutamos na contemporaneidade são apenas frutos de produções de nossa civilização mecanizada, que desde o século XX teria nos sobrecarregado sensorialmente com sua floresta de engenhocas ruidosas. A produção musical a partir do século XX teria sofrido uma transformação drástica em suas práticas por meio de tecnologias que teriam modificado as técnicas da escuta e manipulação gerando conseqüências devastadoras para com as práticas musicais e a maneira de ouvir configuradas até então. Afirma o autor que desde tais consequências, os sons que ouviríamos seriam culturalmente impostos, delineando uma paisagem sonora poluída e desesperadora que nos afetaria psicologicamente de modo negativo e ensurdecedor, tornando nossos sentidos deveras submisso, silenciado, não-criativo. No entanto, seria possível mudar essas configurações sonoras impostas socialmente através do desejo de uma escuta sensibilizada. Tal escuta seria produto de uma atuação consciente e participante sobre nosso mundo sonoro e se daria através de exercícios práticos e do retorno de hábitos já não mais incorporados ao nosso cotidiano.
Um importante hábito destacado pelo autor ao longo de sua obra seria o de aprender a ouvir. Este hábito seria uma necessidade fundante para um efetivo processo de sensibilidade e educação sonora afim de transformarmos nosso modo de ouvir e a paisagem sonora ruidosa em que vivemos. Sobre essa reaprendizagem da escuta, assim afirmou o autor:


Eu acredito que o caminho para melhorar a sonoridade do mundo é bastante simples. Devemos aprender a ouvir. Parece ser um hábito que nos esquecemos. Devemos sensibilizar o ouvido para o mundo milagroso de sons que nos rodeiam. Depois de ter desenvolvido alguma perspicácia crítica, podemos ir para projetos maiores, com implicação social, de modo que outras pessoas podem ser influenciadas por nossas experiências. O objetivo final seria começar a tomar decisões conscientes sobre projetos que afetam a nossa paisagem sonora (SCHAFER, 1992, p. 11, tradução minha).


Aprender a ouvir e exercitar a própria escuta para verter nosso ouvido autômato em um ouvido pensante, eis o propósito do autor. Abrir as terminações nervosas dos ouvidos dos outros sentidos - esgarçar a escuta do paladar, a escuta do tato, dos poros, do olhar. Tornar visível a todos os sentidos o invisível, decidir conscientemente e de maneira crítica a nossa experiência sonora incorporando-a de fato às nossas vidas. Tarefa aparentemente árdua, porém simples quando intermediada pelo desejo, o simples desejo de ouvir.... E foi mesmo de modo a refletir a escuta enquanto pulsação poética desejante, enquanto experimentação, enquanto sensação, possibilidade e um modo de estar e agir no mundo, que trabalhamos os elementos sonoros de modo singular e coletivo durante o curso “Voz, Texto, Coletividade”.  
Tendo o pensamento sobre o campo sonoro conjugado à ação e como modo efetivo de interferir conscientemente em nossa paisagem sonora, fomos estimulados pelos professores Ricardo Basbaum no Rio de Janeiro e Brandon LaBelle na Noruega, para realizar um trabalho artístico que valorizasse a experimentação sonora e se fizesse valer de recursos técnicos durante sua elaboração , tais como o gravador sonoro para a captação do som de modo a abarcar as questões suscitadas ao longo do curso pensando e experimentando o sonoro no contemporâneo.
Acerca da possibilidade de captação dos eventos sonoros, esta é fruto das transformações causadas na prática musical desde o século XX que, como nos revela o pesquisador e compositor de música experimental Michel Chion (1994) autor de Música, media e tecnologia a forma de se produzir o som teria se alterado drasticamente a partir das novas tecnologias insurgentes. Tais tecnologias permitiram alterar os modos de produção do som pois através delas qualquer som poderia ser agora capturado e posteriormente reproduzido, gerando por sua vez uma cisão entre a fonte sonora e seu resultado sonoro. Tal mudança tornou desnecessário que durante a escuta de um som sua fonte estivesse presente; seria preciso somente do suporte de registro do som captado. E foi assim, através de um trabalho inicial pela captura de sons, que nossa experiência sinestésica teve início.
A captação de eventos acústicos de diferentes paisagens sonoras e a partilha coletiva dos sons coletados deu-se como um profícuo exercício experimental ao longo do curso. Demos início às nossas conversas sobre a voz, o texto e a coletividade em processos artísticos sonoros estimulado pelas propostas de Schafer (1992); referenciando-nos em artistas sonoros da vanguarda - tais como John Cage (1912-1992), Alvin Lucier (1913) e Karlheinz Stockhausen (1928-2007); bem como em artistas contemporâneos como o próprio Ricardo Basbaum e seu trabalho sonoro “conversas coletivas”.
Sobre essas conversas coletivas do autor, elas se constituíram de ações performáticas pertencentes ao trabalho “conversas & exercícios [área instalação + conversa coletiva]” exposto na 30ª Bienal de São Paulo no ano de 2012 e trataram-se de leituras públicas desenvolvidas em Workshop e realizadas com participantes e convidados (dentre eles Brandon LaBelle) na área de instalação do trabalho do autor no espaço da Bienal. Visando integrar o texto escrito à sua emissão sonora de forma a incorporar os discursos diversos que irrompem na arte contemporânea, a conversa coletiva 1 “fala, som, texto” e a conversa coletiva 2 “grupo, coletivo, experiência” deram-se em grupo e de forma multivocal, polifônica. Criado o trabalho a partir do Workshop, uma leitura pública coletiva foi realizada na Bienal. Naquela ocasião alguns alunos do curso “Voz, Texto, Coletividade” também participaram do workshop estando presentes na leitura pública do trabalho.
A partilha das experiências sonoras dos trabalhos artísticos de Ricardo Basbaum foram importantes para ajudar-nos a seguir em nossas elucubrações sobre os elementos sonoros do próprio curso. Ainda que a captação sonora de ruídos tenha sido realizada por cada um de nós, interessava também abarcar experimentações relacionadas à voz e ao texto, pensando-o em sua possível multiplicidade sonora, coletiva. Ao longo do curso partilhamos com o grupo algumas experiências sonoras individuais, discutindo-as. Cada aluno revelava ao longo da partilha certas inclinações acústicas.
Como poetisa, interessou-me as possibilidades e intervenções sonoras sobre o texto e através da poesia falada, de forma a criar uma espécie de poética da voz. A fala poética como evocação da arte performática que integra palavra, o corpo, e a voz é um campo que venho experimentando desde 2003. Em Cuiabá-MT, realizei minhas primeiras experimentações de poesia falada no Encontro dos Poetas Livres[2] nas Praças Cuiabanas e dei início também aos meus trabalhos poéticos e performáticos em diálogo tcom as artes visuais, tendo a fotografia como suporte.
Imbricada à performance, os desdobramentos das experimentações poéticas que atualmente tenho realizado em parceria com o ator, músico e fotógrafo Jone Castilho é trabalhada sempre no intuito de expandir o texto para outras esferas como a voz, o corpo e as artes visuais, como se pode ver em uma de nossas experiências fotográficas que se segue: 




Fig. 1. Era a Ela. Fotografia: Jone Castilho. Corpo: Luana Costa.
Pintura corporal: José Cardoso, julho de 2011. Exposta na mostra 1 Instante, Niterói.

O desejo de criar diálogos entre o texto e as poéticas visuais como pode-se perceber também sempre acompanhou-me em minhas inquietações artísticas. E não foi diferente quando da proposta de realização de uma obra artística sonora por parte dos professores e artistas Ricardo Basbaum e Brandon LaBelle durante curso “Voz, Texto, Coletividade” no ano de 2012. Para a realização do trabalho correspondente a este curso de artes sonoras tive de empreender uma experimentação profunda do campo textual enquanto potencialidade sônica. Esgarçar o som enquanto elemento de plasticidade acústica por meio de tecnologias contemporâneas tal como gravadores sonoros e programas para gravação e audição de áudio foram eventos inéditos para mim. Sobremaneira, este trabalho não concretizou-se de modo individual. A intenção dos professores foi a de efetuar uma parceria entre os estudantes de Pós-Graduação em Artes do Rio de Janeiro e os estudantes de Pós-Graduação da Academia de Belas Artes da Noruega. Selecionadas por afinidade curricular pelos professores - Ricardo Basbaum no Rio de Janeiro e Brandon LaBelle na Noruega - o meu trabalho no curso deu-se em parceria com a artista estoniana Hedi Jaansoo. Os processos de nosso trabalho rumo à criação de nossa obra tiveram início em outubro de 2012, quando do primeiro contato por correio eletrônico, como se detalhará.

Primeiros diálogos: Sonoridade, visualidade e texto no processo de criação da obra From the Forest/Da Floresta

 Hedi Jaansoo enviou-me àquela data um arquivo de sua voz e uma imagem da floresta da Estônia (Fig.2), país báltico da Europa Setentrional e seu país natal. No texto enviado junto à imagem ela detalhava-me o interesse em fazer desta imagem um elemento para nossa obra em processo.


 

           Fig.2 Floresta da Estonia. Hedi Jaansoo, 2012

Segundo havia-me me afirmado Jaansoo, o seu desejo era o de editá-la em movimento circular, movimento este que para ela simbolizava o ritmo e a continuidade da vida. A artista desejava também associá-la ao som de sua respiração para acentuar a proposta da relação intrínseca entre a natureza e a vida humana.
Paralelamente ao envio da imagem da floresta por Hedi Jaansoo, eu efetuava uma visita para Rio Branco, capital do Estado do Acre. Tal viagem, aproximando-me da Floresta Amazônica, despertou meu interesse pela flora brasileira e os elementos da natureza enquanto material e matéria potente para a criação artística.
Já completamente envolvida e contaminada pelas elucubrações do curso e as assertivas sobre as paisagens sonoras, dei início aos meus primeiros registros dos eventos sonoros daquela região. A intenção da viagem havia então se convertido também no desejo de executar captações de sons através do gravador sonoro, companheiro inseparável desde o início do curso; apontar impressões escritas e fotografar a cidade de Rio Branco ainda desconhecida aos meus olhos e ouvidos era também o meu intuito.  
Tendo em mãos desde o início da viagem um caderno confeccionado por mim e intitulado “Caderno de Sonhos”, realizei em suas folhas em branco a anotação diária de meus sonhos na capital do Acre e a escrita de impressões do lugar durante minhas caminhadas pelo local.
 Como um exercício de escuta para o fazer sonoro realizei um primeiro vídeo da imagem de uma forte chuva que caíra em Rio Branco dando ênfase ao seu som; gravei os ruídos de coachares de sapos em diversos pontos da Universidade Federal do Acre; da voz de um indígena fazendo um pronunciamento público nessa mesma Universidade; escrevi da sensação experimentada quando de meu alojamento na moradia indígena existente na Universidade Federal do Acre; descrevi em meu caderno os sabores da comida oferecida a mim e feitas por um casal de indígenas que ali estavam; detalhei sobre a noite em que todos que cantávamos e contávamos histórias ao redor de uma fogueira durante uma noite calorosa sob a Lua crescente. A expectativa era a de fazer destes escritos um dado para agregar aos processos artísticos de nossa obra quando de meu retorno ao Rio de Janeiro.
No entanto, tais expectativas viram-se momentaneamente perdidas quando do extravio deste caderno no Aeroporto de Belo Horizonte - Minas Gerais. Ao retornar à minha morada no Estado do Rio de Janeiro, desejei salvaguardar de algum modo as impressões e sensações que ainda estavam vivas em minha memória.
No anseio por capturar essas impressões um tanto fantasmáticas desta ida à capital do Acre em parte esquecidas como alguns de meus sonhos anotados periodicamente durante os quatro dias que lá passei, tomei a decisão de realizar uma escrita literária desta viagem. Tal escrita poderia de algum modo condensar a experiência e ser uma espécie de cartografia mnemônica poética de minha vivência no local. Escrevi então um texto e dediquei-o ao Acre. Intitulei-o Sonho Amazônico. Eis os seus versos:



Sonho Amazônico

No seio da Floresta
Vi pajés coloridos entoarem cânticos
Índias de prata abrirem estrelas
E entregar suas luzes como oferenda
Para fazer dançar
os príncipes-trovões

No seio da Floresta
Vi o Sol transformar
os pássaros em ouro
Vi raízes e folhas virarem manto
E o leite das árvores dos seringais
Pintarem de branco
os cabelos dos Rios

No seio da Floresta
Vi o Povo da Água emergindo da chuva
Vi o Povo do Fogo sobre os raios do Sol
Vi o Povo da Terra saindo das grutas
E mulheres guerreiras voltando das lutas

No seio da Floresta
Ouvi as vozes das sereias-feiticeiras
Onças aladas movendo-se nas telhas
Ouvi pulsar o coração de uma estrela

No seio da Floresta
Com meu terceiro olho sônico
Movi-me nas densas trilhas de éter
Rumo a um íngreme sonho amazônico.

Após escrevê-lo apresentei o texto escrito em língua inglesa à Hedi Jaansoo, que respondeu-me com entusiasmo e enfatizando a aproximação de eventos de sua própria vida com os versos da terceira estrofe do poema. A partir desta escrita e da recepção positiva pela artista sugeri que realizássemos uma conjugação da experiência sonora da terceira estrofe deste texto com sua imagem da Floresta da Estônia, mas de modo a operar de modo distinto e não convencional com a emissão sonora de minha voz. Aqui destaco a importância da leitura do texto de Michel de Certau (1996) durante o curso para o pensamento deste procedimento sônico.
Afeta-me os fenômenos de linguagem que apontam para os desejos e atos de transcriação das operações normativas da língua e as manifestações linguísticas que indicam uma elaboração de alteridades para a criação de um tópos literário capaz de causar uma fissura na própria verve da linguagem - fenômenos e ações poéticas das quais o escritor Ghérasim Luca[3] (1913-1994) constitui uma importante referência para mim. Ora, sobre tais fenômenos, em especial a glossolalia, Michel de Certau, assim afirmou sobre suas emissões:


Arte da fala [un art de dire] dentro dos limites de uma ilusão (...) desregulam a organização dos sistemas de significado como ervas daninhas que crescem por entre o concreto. Por um momento, como o ritual ‘Loa’ Vodu, as vozes se apossam do discurso. (CERTAU, 1996, p. 29, tradução minha).


No caminho de uma intervenção sonora menos à ordem dos ditames orais e mais à desconstrução dos discursos majoritários da linguagem, procurei realizar uma gravação sonora da poesia que fosse convidativa para a entrada nessas perturbações linguísticas e incitasse ao segredo e ao secreto, ao ritual e ao mágico, já que minha experiência vivida na região Amazônica também havia sido atravessada pelo ritualístico.
Assim, a gravação sonora da 3ª estrofe foi realizada de modo que a impostação de minha voz fosse outra que não a minha natural e usual nos modos de fala convencionais. Falada de maneira sussurrante, emiti-a como se tais palavras fossem próprias de um segredo contado aos ouvidos de alguém por alguma entidade ou espírito das florestas.
Na intenção de também preservar a ideia sugerida por Hedi (imbricar a imagem em loop da floresta da Estonia ao som de sua respiração) e seguindo a sugestão dada em sala de aula pelo Prof. Ricardo Basbaum, reeditei o som de minha voz sussurrada ao som de minha respiração sobrepondo-as. Minha respiração, feita de modo convulsivo, anti-natural e bastante marcado através de minha inspiração efetuada pela boca possibilitou converter o trabalho sonoro em uma dupla voz, um duplo som, uma voz coletiva.
 Traduzida para o inglês, a gravação foi novamente enviada para Hedi Jaansoo, que realizou a edição final junto ao seu vídeo da floresta estoniana de maneira que o som acabou por torna-se uma emissão sônica em loop e em uníssono com a imagem da floresta. Estes processos desaguaram por fim em nossa obra From the Forest/Da floresta, constituindo assim um encontro singular entre nossas florestas, intermediadas pelos diálogos entre texto, voz e imagem.
O nosso trabalho artístico integrou a exposição Dupla-Boca/Double-Mouth sob curadoria dos professores e artistas Ricardo Basbaum e Brandon LaBelle tendo sido levada à público, junto aos demais trabalhos de outras duplas de alunos, na exposição realizada em Bergen, Noruega e na Galeria Cândido Portinari da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Brasil.

Bibliografia:
CERTAU, Michel. Vocal Utopias: Glossolalias. In: Representations, Volume 0, Issue 56, Special Issue: The new Eruditon. Automn, 1996.

COX, Cristoph. Beyond Representation and Signification: Toward a Sonic Materialism. In: Journal of Visual Culture, vol. 10. Sage Publications: Los Angeles, London, New Delhi, Singapore and Washington DC, August, 2011. Disponível em: http://vcu.sagepub.com

CHION, M. Música, media e tecnologia. Lisboa: Instituto Piaget, 1994.

Foucault, M. 2006. “Outros Espaços”. Estética: literatura e pintura, música e cinema, Ditos e Escritos Vol. III, Rio de Janeiro, Forense Universitária.

SCHAFER, R. Murray. A Sound Education. Canada: Arcana Editions, 1992.

LA BELLE, Brandon. Background Noise: Perspectives on sound art. Continuum International Publishing Group: New York, 2006.

VASCONCELOS, Jorge; BRANCO, Guilherme Castelo. “Michel Foucault e a Literatura” In: Arte, vida e política: ensaios sobre Foucault e Deleuze. Rio de Janeiro: LCV, 2010.




[1] Poetisa, Performer multimídia, Atriz. Professora de Língua Portuguesa e Língua Espanhola. Mestranda em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense – RJ.
[2] O Encontro dos Poetas Livres nas Praças Cuiabanas foi idealizado em 2001 pelo poeta cuiabano Neneto Sá e obteve ao longo de sua existência a presença de muitos poetas de Cuiabá, que temporária e nomadicamente habitavam as praças da cidade para falar e ouvir poesia.
[3] Segundo Guilherme Castelo Branco, para o poeta romeno Ghérasim Luca, a poesia seria “uma operação pela qual cada palavra é submetida a uma série de mutações sonoras, e cada uma das facetas da palavra acaba por libertar a multiplicidade de sentidos que ela carrega, algumas delas radicalmente novas” (CASTELO BRANCO, 2010, p. 81). 

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Obrigada, Hélio Oiticica! - Como verti os textos do artista em círculo de fogo para aquecer meu peito

Cartografia para o Mundo-Abrigo de Hélio Oiticica
 Caderno Rumos. Luana Costa. Niterói, 2012.
Hélio Oiticica, um balbucio pronunciado entre folhas e tropicálias.
         Um grito quebradiço por entre galhos e árvores.
         Uma erva daninha crescente sob o solo de concreto...
     Ouvindo-o ao longo de minha vida através de entreditos pronunciados como glossolalias tribalísticas de um canto mundano, o nome do artista não se fez ressoar com amplitude odisséica nos confins das matas mato-grossenses a Oeste do País, território onde vivia. Tive de inclinar-me a bombordo, costa esquerda, Sudeste do Brasil para escutar Hélio com plenitude radiofônica. Oiticica, anarquista “de corpo e alma” (OITICICA, 2009, p.41), era neto de anarquista[1] e foi uns dos artistas de vanguarda mais representativos no Brasil; continua sendo válvula propulsora para muitas ações artísticas contemporâneas.
Hélio Oiticica carrega o fogo em seu próprio nome: Na mitologia grega, Hélio é o Deus-Sol. Irmão de Aurora e da Lua casou-se com a filha do Titã Oceano e é pai de Pasífae, mulher que daria luz ao Minotauro. Como tarefa, O Deus-Sol tinha de percorrer o céu todas as manhãs de leste a oeste num carro de fogo puxado por quatro corcéis alados para levar calor aos homens. Olho aberto sobre o mundo o monumento erguido ao deus, conhecido também como o colosso de Rodes, elevava-se muitos metros acima do nível do mar e permitia aos navios atravessarem o Oceano passando por entre as pernas da estátua do deus sem correrem perigo (HACQUARD, 1996, p. 61).
            Hélio Oiticica nasceu no Rio de Janeiro e abriu os olhos sobre o mundo em julho de 1937. Percorreu-o ardendo em vida e arte para deixá-lo em março de 1980 na cidade onde nascera e partiu não sem antes entregar-nos como herança de um delírio inventivo os seus pensamentos sobre sua própria obra e sobre o mundo, grande parte deles expostos em sua escrita, pois escrever sobre seu trabalho foi prática desenvolvida desde o início de suas proposições artísticas. Hélio, inventivo, performer, experimentador, escrevera centenas de textos em que elaborou/laborou o pensamento sobre seus trabalhos bem como inúmeras críticas sobre a época em que vivera e a situação artística de seu tempo. Foi o representante mais jovem dos neoconcretos[2], movimento artístico em que também pertencera Lygia Clark (1920-1988), artista com quem estabelecera uma profunda relação de admiração e amizade durante longo tempo. Escreveu vários textos em que analisou os aspectos da obra da artista e manteve com ela correspondência através de cartas[3] ao longo de dez anos.
Além das cartas trocadas com Lygia, muitos dos textos de Hélio podem ser encontrados em publicações[4], páginas de seus caderninhos de bolso, folhas avulsas, páginas datilografadas e outros escritos, arquivados e disponibilizados pelo Projeto HO[5]. A existência dos arquivos do Projeto HO mostra-se hoje de importância indiscutível para a divulgação da obra do artista, já que permitiu importantes publicações em livro dos textos de Hélio, como a obra Aspiro ao grande Labirinto (1986), publicação que organizou os textos do artista correspondentes à sua produção entre as décadas de 1954-1969.
No Prefácio à obra referida, Luciano Figueiredo concluiu sobre a produção escrita de Hélio:

Hélio Oiticica é uns dos casos raros da arte brasileira onde o artista elabora teorias, conceitua e pensa a própria obra. Assim o fez desde os anos de aprendizado e desenvolveu uma forma própria como sua poética, ao longo de toda sua trajetória. Para Oiticica escrever foi inicialmente um meio de ‘fixar’ questões essenciais no campo da arte e isto está bem claro em seus primeiros textos, curtos e ainda sob a forma de diário (OITICICA, 1986, p.5).


O próprio Hélio Oiticica reconhecia a importância da atividade escrita como elemento nodal de seu processo de trabalho. Para ele, os escritos realizados por artistas seriam um testemunho sobre as experiências realizadas e permitiriam adentrar no pensamento que teria originado as proposições. Essa afirmação foi feita por Hélio Oiticica em entrevista a Vera Martins para o Jornal do Brasil no ano de 1961:

Acho importantíssimo que os artistas deem o seu próprio testemunho sobre sua experiência. A tendência do artista é ser cada vez mais consciente do que faz. É mais fácil penetrar o pensamento do artista quando ele deixa um testemunho verbal de seu processo criador. Sinto-me sempre impelido a fazer anotações sobre todos os pontos essenciais do meu trabalho (OITICICA, 2009, p.25).


A produção escrita acompanhou as produções de Hélio desde 1954, quando começou a trabalhar com o artista Ivan Serpa (1923-1973)[6].

Os processos de seus projetos tais como Bólides; Cosmococa; Núcleos; Tropicália; Penetráveis; Parangolés; Éden e Barracão foram alimentados e retroalimentados por seus escritos. Da leitura dos textos de Hélio, se percebe as interconexões existentes entre eles, uma ideia irradiando sobre a outra, uma proposição fazendo referências às demais. Cada texto age como um ponto de luz que imaginariamente se conectam para, entre si, formarem as imagens de uma constelação. Hélio, que considerava o desejo de realização de suas proposições como sendo uma “necessidade cósmica” (HÉLIO, 1986, p. 28), deixou-nos em seus textos as imagens de um labirinto: para deixar-se afetar por suas ideias é preciso também permitir-se perder-se...
À mesma época dos notebooks de textos como Barracão (1969), Hélio também escrevera Mundo-Abrigo (1973) texto que se revela como uma potência de registro escrita de suas ambições estéticas, de seu pensamento sobre o mundo, a arte e a vida.  Proposição para uma “experimentalidade livre” (OITICICA, 1973, p.1), Mundo-Abrigo é um texto programa que nos conduz às formulações vitais do artista: o mundo é abrigo, guarida, shelter e possível de ser experimentado de modo não condicionado e pode ser construído coletivamente. Assumindo a experimentalidade em suas proposições, o sentido de abrigo e coletividade descrito por Hélio opõe-se aos comportamentos sociais, às estruturas da “casa-família” e das representações da estrutura familiar, consideradas retrógadas pelo artista. Para ele, ao contrário, é preciso buscar as possibilidade de exercitar uma atividade de experimentalidade livre no mundo. Destacando o urbano nesse processo - espaço reconhecido por ele como mais propício a experiências - Oiticica fornece pistas sobre os tipos de experiência que buscava realizar. A experimentação do Mundo-Abrigo não se trata da criação de condições de uma experiência estética fracionada, mas sim de tomar o mundo de assalto para transformá-lo em

PLAYGROUND e onde o comportamento individual (- coletivo) não se quer adaptar a patterns gerais de trabalho lazer, mas a experimentação de comportamento mesmo que essas nasçam fragmentadas e isoladas (o que deve acontecer) (OITICICA, 1973, p.7).

Abrir-se ao mundo para fazê-lo morada e guarida seria uma das ideias centrais de sua proposição[7] que, sobretudo é também de natureza política, já que buscava implantar uma nova prática de vida para o indivíduo. Para Hélio Oiticica (1973) experimentar o Mundo-Abrigo implicaria também em um “tipo de experiência de vários níveis” (p.3), realizada sem distanciar-se da vida ou dos interesses do dia-a-dia, mas lançando-se inteiramente a ela.
A proposição contida neste texto e as ideias políticas libertárias que o nutrem insuflaram-me para prosseguir com minha pesquisa artística. Quando decidi velejar para outras terras, correr mundo, embarcar em outras naus, descer em outros cais optando “experimentar solto das amarras da terra-terrinha” para lançar-me “own our own numa condição de explorar” (OITICICA, 1973, p.1-2, grifo do autor), vi o mundo abrir-se diante de meus poros para tornar-se o meu resguardo, minha proteção, meu amparo, meu agasalho, meu conchego, meu shelter. Encontrando o abrigo no Mundo vivi-o com a intensidade combatente de um corpo guerreiro exaurido pela guerra. Disse o bruxo: “Abrir-se ao MUNDO e vivê-lo como GUARIDA-ABRIGO é aproximar-se e arder pela vida para a intensificação do viver” (OITICICA, 1973, p. 3, destaque do autor). Tomei para mim essas palavras para arder na vida e pela própria vida. Aproximei-me... e deixei-me incendiar...  
Tendo-me lançado de modo irremediável aos movimentos da vida ao decidir lançar âncora no Estado do Rio de Janeiro e já solta das amarras da “terra terrinha”, encontrei neste texto de Hélio a força própria de um levante para prosseguir minha proposta artística que, todavia, se constitui por uma ação de experimentalidade livre para fazer do mundo o meu abrigo, minha casca, minha proteção e minha guarida. De fato, em minha proposta artística procuro fazer do Mundo e das ruínas de aconchego encontradas nos espaços da cidade uma franca morada ainda que efêmera para meu corpo, como se vê a seguir:


Meditação Urbana, da série Em busca
de espaços de abrigo. Luana Costa. Foto: Ana Tharoell.
As proposições contidas em Mundo-Abrigo me influenciaram na escolha da palavra “abrigo” em minha pesquisa para referir-me a essa saga nas cidades de Niterói e Rio de Janeiro. Lançando-me pelas regiões desconhecidas das cidades, atravessando lugares ainda estrangeiros para mim, o texto do artista instalou-se no meu peito como roda de fogo acendida para aquecer o meu corpo. As palavras-carne de Hélio Oiticica deram-me vitalidade, força, energia e também coragem para prosseguir essa minha busca por espaços na cidade que me permitam, através de uma experimentalidade livre no mundo, criar o meu modo de vida guerreiro.





[1] José Oiticica (1882-1957), anarquista, filólogo, professor, poeta, avô de Hélio Oiticica, foi uns dos membros da Insurreição Anarquista (1918) no Brasil. Foi autor de Sonetos (1919), A doutrina anarquista ao alcance de todos (1945), dentre outros.

[2] Movimento artístico de vanguarda dos anos 1950-1960 ocorrido no Brasil. Hélio Oiticica participou da I Exposição Nacional de Arte Concreta, em 1956-1957, no Rio de Janeiro e em São Paulo.

[3]CLARK, Lygia. OITICICA, Hélio. Cartas, 1964-1974. Org. Luciano Figueiredo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996.

[4] Atualmente César Oiticica Filho, sobrinho do artista, cineasta, curador, artista plástico e fotógrafo, têm organizado importantes obras para divulgação do trabalho de Hélio tais como a coletânea Oiticica - Entrevistas (2009), reunião de entrevistas realizadas com o artista ao longo das décadas de 1960-1980 e Museu é o mundo (2012), livro de ensaios de Hélio.

[5] O Projeto HO é uma associação sem fins lucrativos criada em 1981 pelos irmãos de Hélio com a finalidade de preservar, estudar e difundir a obra plástica e escrita do artista. Em parceria com o Projeto HO e o Instituto Itaú Cultural, Lisette Lagnado, curadora e crítica de arte, criou no ano de 1991 o Programa Hélio Oiticica, para disponibilizar virtualmente aos pesquisadores do artista a produção teórica de Hélio contida em seus escritos.

[6] Ivan Serpa foi fundador do Grupo Frente  no ano de 1954, grupo de vanguarda composto por artistas do Rio de janeiro para representar o movimento Concreto. O grupo Frente foi integrado por Hélio Oiticica, Lygia Clark, Lygia Pape, Ferreira Gullar entre outros. No entanto, os confrontos ideológicos com o Grupo Ruptura (movimento Concreto de São Paulo) levaram à extinção do Frente em 1956 e a criação do movimento Neoconcreto.

[7] A proposição foi experimentada através do projeto Barracão, montado pela primeira vez na Universidade de Sussex em 1969. O artista construiu, ajudado pelos estudantes, uma estrutura formada por ninhos que poderiam ser habitados.

domingo, 22 de setembro de 2013

A poetisa torna-se artista marcial: Ensaio para uma poética das mãos vazias




        Aplique o sentido do karatê a todas as coisas. Isso é o que ele tem de belo.
                     凡ゆるものを空手化せよ其処に妙味あり
                                                          (Gichin Funakoshi)


Sorrir à morte e reverenciá-la com o gracejo de uma gueixa ou uma alva princesa nipônica. Com o corpo fatigado, enfrentar a exaustão com a mesma fome de vida que ataca a presa um Tigre sem descendentes. Fazer da própria face o rosto adversário que se deve atacar. Viver o caminho mirando-o como quem contempla uma espada prestes a alcançar o fio último de uma frágil e rota respiração, já descompassada pelos órgãos lastimados pela guerra. Reverência e luta confronto e morte. Em sincrônico silêncio com o espaço são os meus próprios órgãos que sangram invisíveis o dojo[1] enquanto combato de punhos vazios e o branco kimono[2] - combato a mim para transformar-me.
Em lenta metamorfose permito que o corpo e a mente sejam pacientemente forjados similarmente como faz o artista-espadeiro ao forjar a lâmina e a alma de uma katana[3] samurai. Com esta mesma espada desferir o golpe sobre o pensamento que se espraia sobre mim e que insiste em parar-me a mente ao invés de multiplicá-la rumo aos poros múltiplos do vazio. Tornar o pensamento solto e livre desfrutando do estado de sopro, já anunciado pelo samurai Myamoto Musashi: “Deixe a mente flutuar”. Eis que nestas breves palavras do guerreiro de vida nômade repousa também o meu desejo em tornar-me flutuante, fazer de meu corpo matéria leve tal qual um bengalim-do-japão, pequeno pássaro de asas de cores mutantes que ao realizar o seu voo parece torna-se ele mesmo uma wakizashi[4] em pleno ar, cortando o céu com as formas de suas asas.
No dojo também desenho formas: ensaio a rítmica coreografia de uma dança marcial, treino as forças, as impulsões, as energias e os movimentos de um ballet outro - o ballet da morte - como disse certa vez o nosso sensei. Tal qual bailarina do abismo danço com o avesso invisível de mim, o adversário imaginário, invencível, preciso, exato, invulnerável. Atingir tal adversário é o desafio que nos apura e permite multiplicar o campo de visão e estratégia. Todavia, para alcançá-lo é preciso primeiramente intentar vê-lo, buscar materializá-lo a cada movimento executado, primando pelo detalhe e exercício inesgotável, esgarçando as fronteiras dos sentidos.
Lutar contra o adversário invisível é sobremaneira lutar contra si; o trabalho corporal realizado no dojo não se desmembra do trabalho que se deve realizar sobre a personalidade. Tal como a alma da espada se incorporava à alma do samurai quando do ritual da escolha da katana, também é preciso que o karateka entrelace o seu corpo físico ao espiritual de modo a trabalhá-los juntos. Este é uns dos aspectos espirituais da arte que há muito vem sendo invocado por experientes praticantes do Karatê. Desde sua criação, o mestre Gichin Funakoshi (1868-1957) fundador do Karatê-do 空手道 atentara para a espiritualidade desta arte da guerra buscando fazer dela não um instrumento para sair vencedor de duelos e disputas, mas uma estrada espiritual pela qual é possível construir um outro modo de vida. Para tanto, exerceu uma profunda mudança nas raízes desta arte marcial, começando pelo próprio nome da luta.
Conhecida na ilha de Okinawa como te (mão) e também tode (mão chinesa), em lugar de kamtê-jutsu (técnica da mão chinesa) a arte foi renomeada pelo mestre como Kara - (vazio) te - (mãos) do - (caminho), literalmente o “Caminho das mãos vazias”. Esta modificação foi realizada por Funakoshi por volta de 1929 logo após concluir seus estudos no templo Zen de Engaku-ji em Kamamura, sob orientação do mestre Ekun. (Funakoshi, 2003, p.30). A noção de vazio incorporada no Karatê-do relaciona-se com a prática do Zen, que fora vivida pelo próprio Funakoshi. Deve ser entendida nas raízes do silêncio e do destrono das certezas, constituído por um processo de intensas descobertas meditativas. 
Acerca do vazio no Zen, há um símbolo constantemente exercitado pelos monges através da caligrafia kanji para representar o momento em que a mente está livre. Metáfora do cosmos e da natureza cíclica do mundo, o círculo do vazio Zen representa as etapas do processo de investigação de si. Sua imagem simboliza a passagem de um estado em que os conceitos internos estão condicionados, rumo a um estado de liberação da mente. Através do comprometimento do próprio praticante, a consciência e a concentração plena podem ser exercitadas através da prática da caligrafia kanji de modo a permiti-lo alcançar a liberdade da mente e o estado do espírito Zen:


      Fig.5. Enso - Círculo do Vazio zen. Caligrafia kanji.
      Terayama, 2003. Reprodução.

A necessidade da liberdade da mente também é tema dos fundamentos criados por Gichim Funakoshi para o Karatê-do como se pode ver neste sexto princípio: A mente deve ficar livre 技術より心術円相. A influência do Zen no coração das práticas e preceitos do Karatê podem ser percebidos também em outros fundamentos que embasam esta arte marcial, como a importância referida à concentração da mente durante a luta, encontrada no décimo sétimo princípio do Karatê-do - A Kamae (posição de prontidão) é para os iniciantes; com o tempo adota-se Shizentai (postura natural) 構は初心者に後は自然体:

A mente confusa é a causa de todo o mal, a base do erro. Só a mente cultivada ao ponto de se tornar serena, tranquila, imutável, é capaz de, como um espelho claro e cristalino, captar a Lua quando ela aparece, ou refletir um pássaro voando no céu. Só com a mente tranquila é possível fazer julgamentos justos e lúcidos, livres de erros (...). Na profundidade do seu conteúdo e na maneira concisa como é expresso, o princípio dezessete simboliza o significado profundo do caminho ilimitado do treinamento que deve ser percorrido pelo praticante do karatê (FUNAKOSHI; NAKASONE, 2005, p.25).


As proximidades existentes entre o Karatê-do e o Zen Budismo, se entrelaçam sobremaneira na ideia do vazio bem como na experiência, pois no Karatê assim como no Zen, “a experiência pessoal é tudo” (SUZUKI, 1969, p. 53). Nesse sentido, é preciso vive-lo para penetrar em seus aspectos mais profundos e desmistificar interpretações errôneas e superficiais acerca desta arte marcial.
Para aquele que não o experimenta pessoalmente acaba por interpretá-lo apenas como uma prática de golpes vigorosos que ensejam apenas a força física ou “como um mero espetáculo no qual dois homens se atacam selvagemente (...) ou em que um homem se exibe quebrando tijolos ou outros objetos duros com a cabeça, as mãos e os pés” (NAKAYAMA, 1978, p. 9). Mesmo para os que experimentam o caminho das mãos vazias há aqueles que tendem a enfatizá-lo em demasia como esporte, privilegiando o êxito na vitória de competições e negligenciando o karatê em suas técnicas elementares, fundamentais.
Sensei Nakaiama, tendo estudado diretamente com sensei Gichin Funakoshi também destacava o caminho espiritual do Karatê e lastimava a visão estritamente competitiva imbuída à arte como dirá na Introdução ao Volume II de sua obra:


É lamentável que o karatê seja praticado apenas como uma técnica de luta. As técnicas básicas foram desenvolvidas e aperfeiçoadas através de longos anos de estudo e de prática; mas para se fazer um uso eficaz dessas técnicas, é preciso reconhecer o aspecto espiritual dessa arte de defesa pessoal e dar-lhe a devida importância (...) treinar significa treinar o corpo e o espírito e, acima de tudo, a pessoa deve tratar o adversário com cortesia e a devida etiqueta. (NAKAYAMA, 1999, p. 9).


Analogamente, muitos dos conceitos do Zen são também mal interpretados. As más interpretações referente a esta doutrina, segundo Suzuki, existem simplesmente porque as verdades do Zen não são pensadas sob os ramos da lógica ou de sutilezas dialéticas. Precisam ser experimentadas na alma e correlacionadas com a própria vida. Muitas das expressões do Zen são elementares e práticas, como se vê na afirmação a seguir:


A vida para o Zen deve ser vivida da mesma forma que o pássaro voa pelo ar, ou o peixe nada no seio das águas (...) O Zen trata de preservar tua vitalidade, a liberdade nativa, e acima de tudo a integridade do teu ser. Em outras palavras, o Zen quer viver de dentro. Não ser preso a regras e sim criar as próprias regras. Esta é a espécie de vida que o Zen está tentando nos fazer viver. (Suzuki, 1969, p.87).


Experiência que deve ser vivenciada, as práticas que constituem o Zen se enredam em uma experiência simples chamada de “experiência-fundante” que é capaz de lançar sobre a vida do praticante uma rede de percepções para despertá-lo ao caminho das verdades Zen.
No Caminho das mãos vazias também há uma profundidade que toca o irresoluto e sempre faz florescer uma nova descoberta durante o treino no dojo. Tendo aprendido muitas lições sobre a natureza da vida através dos ensinamentos do sensei, desde que tornei-me karateka o mergulho que realizei nesta arte marcial delineou o modo de vida que venho tentando fundar em meu ser - um modo de vida poético-guerreiro forjado dia após dia em meu corpo e espírito através da minha prática pessoal no dojo, prática esta que se torna de difícil descrição já que muitas das vivências no Karatê-do perpassam o indizível...
 Como traduzir em palavras o som que é preciso ouvir do kimono ao cortar o ar quando do treino dos golpes de mãos e pés? Som que desenha no espaço energias de samurais feridos docemente por katanas ávidas, afiadas e brilhantes. Som que desenha cavalos nos refúgios do silêncio e manifesta os segredos de corpos-espada emergindo em plena bruma. Som de fragmentos de vidas guerreiras esquecidas e trocadas pela pólvora. Som dos passos de espíritos errantes que abandonados das espadas, fizeram nascer as katanas em seus próprios ossos, músculos, almas, pés e punhos. Som de raios de trovão entre as nuvens. De pincel sobre papel. De um sorriso sob a lua em flor. De raízes crescendo debaixo do chão. De folhas entre o vento.  Som do voo livre de um pássaro bengalim em uma primavera de Sol.


BIBLIOGRAFIA:
FUNAKOSHI, Gichin; NAKASONE, Genwa. Os vinte princípios fundamentais do
karatê: o legado espiritual do mestre. São Paulo: Cultrix, 2005.

GASKIN, Carol; HAWKINS, Vince. Breve história de los samuráis. Madrid: Ediciones
Nowtilus, S. L., 2004.

SUZUKI, Daisetz. Introdução ao Zen Budismo. Org.: Christmas Humphreys. São
Paulo: Editora Pensamento, 1969.

TERAYAMA, Tanchu. Zen Brushwork – Focusing the Mind with Calligraphy
and Painting. Tokyo, Kodansha International Inc., 2003.

NAKAYAMA, Masatoshi. O melhor do Karatê, Vol.II. São Paulo: Cultrix, 1999.



[1] Dojo 道場 - Do (caminho) Jo (lugar) - é o espaço físico onde se praticam as artes marciais. O termo é oriundo do Zen Budismo e tem-se no Do (caminho) o seu sentido espiritual podendo este significar também “lugar de iluminação”. Em respeito a este espaço todo praticante de Karatê deve fazer uma reverência antes de adentrá-lo e ao deixá-lo.
[2] Vestimenta tradicional japonesa utilizada pelo karateka.
[3] A primeira espada que carregava um samurai, de maior comprimento, utilizada em combate.
[4] A segunda espada carregada pelo samurai, de menor comprimento. Por sua precisão era também utilizada para cometer o seppuku, suicídio do samurai.