sábado, 5 de maio de 2012

O marco zero


Niterói, 05 de maio de 2011, 12h30 pm.  



Em busca de territórios de abrigo.
 Foto: Mariana Farias. Luana Costa, 2011.


Houve noite e manhã, o sexagésimo terceiro dia. Abro os olhos e lentamente a imagem do sonho noturno se desvanece. Desperto ao som de meus ossos se quebrando, galhos velhos de floresta seca. Como se deslocados do corpo, meus ossos parecem dançar um movimento anímico e perfurar-me cada película da epiderme (meus órgãos devem estar em hemorragia enquanto falo). Impactos do exterior transtornando-me o meio: efeitos da água salgada sobre minha concha doce destroçam-me a casca atingindo a pele fina. Esta concha não suporta a ausência de rio. Movida por minha modesta fome de quarenta e três disparos, rastejo-me sobre o chão e vou até a cozinha almoçar restos de torrada molhadas no café velho. Sentindo os calcanhares contorcerem, volto em ritmo de elefante para o único cômodo que posso chamar meu. Ouço os ratos se movendo no telhado. Deve ser o calor das paredes. Aqui elas têm boca e exalam um hálito quente, o mesmo hálito que deve aquecer as pernas de padres debaixo de batinas negras. O calor do quarto parece comprimir ainda mais a minha concha quebradiça de caramujo e tenho vontade de adormecer e adormecer. Deve haver uma força de empuxo sob o meu colchão, magnetismo dos latifúndios do Inferno. Vendo-a bem, ela assim recostada na parede alaranjada parece mesmo o leito de um morto. Talvez eu esteja de fato morta e estes sejam escritos fantasmáticos (o que garante a veracidade da vida?).

Pelo menos eu tenho um celular. Minhas ampulárias-irmãs me telefonam. Perguntam como vai a vida no quarto. Digo que a vida vai um cômodo só. A saudade trinca os ossos, quebra vagarosamente os pedaços de minha casca frágil, estilhaça-a ainda mais o ricochetear do vento de Sal. Às vezes escuto o  ruído anunciando o desmonte(é preciso aproximar-se para ouvir) e sinto que devo sair da concha quebradiça, arriscar um escape antes que ela se quebre e me dilacere. Sou pedaço, carcaça, carne varrida de minha própria terra. Desço as escadas estreitas, abro o portão: com o  corpo em ruínas, a garganta da cidade vem me receber.

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