domingo, 22 de setembro de 2013

A poetisa torna-se artista marcial: Ensaio para uma poética das mãos vazias




        Aplique o sentido do karatê a todas as coisas. Isso é o que ele tem de belo.
                     凡ゆるものを空手化せよ其処に妙味あり
                                                          (Gichin Funakoshi)


Sorrir à morte e reverenciá-la com o gracejo de uma gueixa ou uma alva princesa nipônica. Com o corpo fatigado, enfrentar a exaustão com a mesma fome de vida que ataca a presa um Tigre sem descendentes. Fazer da própria face o rosto adversário que se deve atacar. Viver o caminho mirando-o como quem contempla uma espada prestes a alcançar o fio último de uma frágil e rota respiração, já descompassada pelos órgãos lastimados pela guerra. Reverência e luta confronto e morte. Em sincrônico silêncio com o espaço são os meus próprios órgãos que sangram invisíveis o dojo[1] enquanto combato de punhos vazios e o branco kimono[2] - combato a mim para transformar-me.
Em lenta metamorfose permito que o corpo e a mente sejam pacientemente forjados similarmente como faz o artista-espadeiro ao forjar a lâmina e a alma de uma katana[3] samurai. Com esta mesma espada desferir o golpe sobre o pensamento que se espraia sobre mim e que insiste em parar-me a mente ao invés de multiplicá-la rumo aos poros múltiplos do vazio. Tornar o pensamento solto e livre desfrutando do estado de sopro, já anunciado pelo samurai Myamoto Musashi: “Deixe a mente flutuar”. Eis que nestas breves palavras do guerreiro de vida nômade repousa também o meu desejo em tornar-me flutuante, fazer de meu corpo matéria leve tal qual um bengalim-do-japão, pequeno pássaro de asas de cores mutantes que ao realizar o seu voo parece torna-se ele mesmo uma wakizashi[4] em pleno ar, cortando o céu com as formas de suas asas.
No dojo também desenho formas: ensaio a rítmica coreografia de uma dança marcial, treino as forças, as impulsões, as energias e os movimentos de um ballet outro - o ballet da morte - como disse certa vez o nosso sensei. Tal qual bailarina do abismo danço com o avesso invisível de mim, o adversário imaginário, invencível, preciso, exato, invulnerável. Atingir tal adversário é o desafio que nos apura e permite multiplicar o campo de visão e estratégia. Todavia, para alcançá-lo é preciso primeiramente intentar vê-lo, buscar materializá-lo a cada movimento executado, primando pelo detalhe e exercício inesgotável, esgarçando as fronteiras dos sentidos.
Lutar contra o adversário invisível é sobremaneira lutar contra si; o trabalho corporal realizado no dojo não se desmembra do trabalho que se deve realizar sobre a personalidade. Tal como a alma da espada se incorporava à alma do samurai quando do ritual da escolha da katana, também é preciso que o karateka entrelace o seu corpo físico ao espiritual de modo a trabalhá-los juntos. Este é uns dos aspectos espirituais da arte que há muito vem sendo invocado por experientes praticantes do Karatê. Desde sua criação, o mestre Gichin Funakoshi (1868-1957) fundador do Karatê-do 空手道 atentara para a espiritualidade desta arte da guerra buscando fazer dela não um instrumento para sair vencedor de duelos e disputas, mas uma estrada espiritual pela qual é possível construir um outro modo de vida. Para tanto, exerceu uma profunda mudança nas raízes desta arte marcial, começando pelo próprio nome da luta.
Conhecida na ilha de Okinawa como te (mão) e também tode (mão chinesa), em lugar de kamtê-jutsu (técnica da mão chinesa) a arte foi renomeada pelo mestre como Kara - (vazio) te - (mãos) do - (caminho), literalmente o “Caminho das mãos vazias”. Esta modificação foi realizada por Funakoshi por volta de 1929 logo após concluir seus estudos no templo Zen de Engaku-ji em Kamamura, sob orientação do mestre Ekun. (Funakoshi, 2003, p.30). A noção de vazio incorporada no Karatê-do relaciona-se com a prática do Zen, que fora vivida pelo próprio Funakoshi. Deve ser entendida nas raízes do silêncio e do destrono das certezas, constituído por um processo de intensas descobertas meditativas. 
Acerca do vazio no Zen, há um símbolo constantemente exercitado pelos monges através da caligrafia kanji para representar o momento em que a mente está livre. Metáfora do cosmos e da natureza cíclica do mundo, o círculo do vazio Zen representa as etapas do processo de investigação de si. Sua imagem simboliza a passagem de um estado em que os conceitos internos estão condicionados, rumo a um estado de liberação da mente. Através do comprometimento do próprio praticante, a consciência e a concentração plena podem ser exercitadas através da prática da caligrafia kanji de modo a permiti-lo alcançar a liberdade da mente e o estado do espírito Zen:


      Fig.5. Enso - Círculo do Vazio zen. Caligrafia kanji.
      Terayama, 2003. Reprodução.

A necessidade da liberdade da mente também é tema dos fundamentos criados por Gichim Funakoshi para o Karatê-do como se pode ver neste sexto princípio: A mente deve ficar livre 技術より心術円相. A influência do Zen no coração das práticas e preceitos do Karatê podem ser percebidos também em outros fundamentos que embasam esta arte marcial, como a importância referida à concentração da mente durante a luta, encontrada no décimo sétimo princípio do Karatê-do - A Kamae (posição de prontidão) é para os iniciantes; com o tempo adota-se Shizentai (postura natural) 構は初心者に後は自然体:

A mente confusa é a causa de todo o mal, a base do erro. Só a mente cultivada ao ponto de se tornar serena, tranquila, imutável, é capaz de, como um espelho claro e cristalino, captar a Lua quando ela aparece, ou refletir um pássaro voando no céu. Só com a mente tranquila é possível fazer julgamentos justos e lúcidos, livres de erros (...). Na profundidade do seu conteúdo e na maneira concisa como é expresso, o princípio dezessete simboliza o significado profundo do caminho ilimitado do treinamento que deve ser percorrido pelo praticante do karatê (FUNAKOSHI; NAKASONE, 2005, p.25).


As proximidades existentes entre o Karatê-do e o Zen Budismo, se entrelaçam sobremaneira na ideia do vazio bem como na experiência, pois no Karatê assim como no Zen, “a experiência pessoal é tudo” (SUZUKI, 1969, p. 53). Nesse sentido, é preciso vive-lo para penetrar em seus aspectos mais profundos e desmistificar interpretações errôneas e superficiais acerca desta arte marcial.
Para aquele que não o experimenta pessoalmente acaba por interpretá-lo apenas como uma prática de golpes vigorosos que ensejam apenas a força física ou “como um mero espetáculo no qual dois homens se atacam selvagemente (...) ou em que um homem se exibe quebrando tijolos ou outros objetos duros com a cabeça, as mãos e os pés” (NAKAYAMA, 1978, p. 9). Mesmo para os que experimentam o caminho das mãos vazias há aqueles que tendem a enfatizá-lo em demasia como esporte, privilegiando o êxito na vitória de competições e negligenciando o karatê em suas técnicas elementares, fundamentais.
Sensei Nakaiama, tendo estudado diretamente com sensei Gichin Funakoshi também destacava o caminho espiritual do Karatê e lastimava a visão estritamente competitiva imbuída à arte como dirá na Introdução ao Volume II de sua obra:


É lamentável que o karatê seja praticado apenas como uma técnica de luta. As técnicas básicas foram desenvolvidas e aperfeiçoadas através de longos anos de estudo e de prática; mas para se fazer um uso eficaz dessas técnicas, é preciso reconhecer o aspecto espiritual dessa arte de defesa pessoal e dar-lhe a devida importância (...) treinar significa treinar o corpo e o espírito e, acima de tudo, a pessoa deve tratar o adversário com cortesia e a devida etiqueta. (NAKAYAMA, 1999, p. 9).


Analogamente, muitos dos conceitos do Zen são também mal interpretados. As más interpretações referente a esta doutrina, segundo Suzuki, existem simplesmente porque as verdades do Zen não são pensadas sob os ramos da lógica ou de sutilezas dialéticas. Precisam ser experimentadas na alma e correlacionadas com a própria vida. Muitas das expressões do Zen são elementares e práticas, como se vê na afirmação a seguir:


A vida para o Zen deve ser vivida da mesma forma que o pássaro voa pelo ar, ou o peixe nada no seio das águas (...) O Zen trata de preservar tua vitalidade, a liberdade nativa, e acima de tudo a integridade do teu ser. Em outras palavras, o Zen quer viver de dentro. Não ser preso a regras e sim criar as próprias regras. Esta é a espécie de vida que o Zen está tentando nos fazer viver. (Suzuki, 1969, p.87).


Experiência que deve ser vivenciada, as práticas que constituem o Zen se enredam em uma experiência simples chamada de “experiência-fundante” que é capaz de lançar sobre a vida do praticante uma rede de percepções para despertá-lo ao caminho das verdades Zen.
No Caminho das mãos vazias também há uma profundidade que toca o irresoluto e sempre faz florescer uma nova descoberta durante o treino no dojo. Tendo aprendido muitas lições sobre a natureza da vida através dos ensinamentos do sensei, desde que tornei-me karateka o mergulho que realizei nesta arte marcial delineou o modo de vida que venho tentando fundar em meu ser - um modo de vida poético-guerreiro forjado dia após dia em meu corpo e espírito através da minha prática pessoal no dojo, prática esta que se torna de difícil descrição já que muitas das vivências no Karatê-do perpassam o indizível...
 Como traduzir em palavras o som que é preciso ouvir do kimono ao cortar o ar quando do treino dos golpes de mãos e pés? Som que desenha no espaço energias de samurais feridos docemente por katanas ávidas, afiadas e brilhantes. Som que desenha cavalos nos refúgios do silêncio e manifesta os segredos de corpos-espada emergindo em plena bruma. Som de fragmentos de vidas guerreiras esquecidas e trocadas pela pólvora. Som dos passos de espíritos errantes que abandonados das espadas, fizeram nascer as katanas em seus próprios ossos, músculos, almas, pés e punhos. Som de raios de trovão entre as nuvens. De pincel sobre papel. De um sorriso sob a lua em flor. De raízes crescendo debaixo do chão. De folhas entre o vento.  Som do voo livre de um pássaro bengalim em uma primavera de Sol.


BIBLIOGRAFIA:
FUNAKOSHI, Gichin; NAKASONE, Genwa. Os vinte princípios fundamentais do
karatê: o legado espiritual do mestre. São Paulo: Cultrix, 2005.

GASKIN, Carol; HAWKINS, Vince. Breve história de los samuráis. Madrid: Ediciones
Nowtilus, S. L., 2004.

SUZUKI, Daisetz. Introdução ao Zen Budismo. Org.: Christmas Humphreys. São
Paulo: Editora Pensamento, 1969.

TERAYAMA, Tanchu. Zen Brushwork – Focusing the Mind with Calligraphy
and Painting. Tokyo, Kodansha International Inc., 2003.

NAKAYAMA, Masatoshi. O melhor do Karatê, Vol.II. São Paulo: Cultrix, 1999.



[1] Dojo 道場 - Do (caminho) Jo (lugar) - é o espaço físico onde se praticam as artes marciais. O termo é oriundo do Zen Budismo e tem-se no Do (caminho) o seu sentido espiritual podendo este significar também “lugar de iluminação”. Em respeito a este espaço todo praticante de Karatê deve fazer uma reverência antes de adentrá-lo e ao deixá-lo.
[2] Vestimenta tradicional japonesa utilizada pelo karateka.
[3] A primeira espada que carregava um samurai, de maior comprimento, utilizada em combate.
[4] A segunda espada carregada pelo samurai, de menor comprimento. Por sua precisão era também utilizada para cometer o seppuku, suicídio do samurai.

2 comentários:

  1. Lindo demais, irmã!!!!!!!!!!! Definitivamente lindo!!!!!!!!!!!! Rumo à ''faixa preta'' da vida e da morte!!!!!!!!!!!
    Artista guerreira, e guerreira artista!!!!!!!!!!!! VOCÊ É LINDA!!!!!!!!!!!!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi irmão!!!!!!....
      Que legal que gostou do texto!!!....Obrigada!!!!
      Rumo à faixa preta, da vida e da morte!! No karatê e na vida!!!!....
      Tu que és Lindo, um guerreiro também!!! Te amo!! Saudade, Beijos!!

      Excluir